terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

o silêncio do jardim crepuscular

começou no jardim com a criação de toda uma humanidade. o dia era o sétimo e o jardim suspenso estava verde e gracioso. o sol brilhava intenso feito uma laranja flamejante enquanto pássaros de aço estrondosos rasgavam o céu.

a inflorescência do jasmineiro trêmulo gemeu baixinho.

nem sequer uma nuvem prenunciava chuva, bica nenhuma pingava uma gota. na boca, a língua estalava seca e áspera e o calor mantinha-se estático: "bom-dia sol!" de olheiras insones. sol, astro maior, demasiado real, corola de girassol suspensa em chamas. o sol gerava partículas sanilizadas sobre as pálpebras cegando a visão, sublinhando olheiras. o sol requeria do homem grossas-parassois-sobrancelhas. o sol provocava devaneios de braços entrelaçados à quietude do jardim suspenso.

o bambuzal do canteiro acordara em alvoroço, assustado, e tamanho descontentamento amarrou-lhe logo a cara. parecia de qualquer modo avesso a surpresas - exceto as boas, é claro. clamava "pai abraão, pai abraão" enquando rogava por água. as helicônias, musas enraizadas em solo ácido, eram contraltos delicadas que carregavam gravíssimas feridas de amor. o canto das helicônias era baixinho, espécie de sussurro jururu.

as onze horas eram continentalmente pontuais e foram as que mais floriram em primaveras passadas. durante as férias do jardim de infância, após o café da manhã, eu as contemplava desabrochar com olhos imaculados de inocência. minha relação com as onze horas me remete aos dias em que até a pequenez das novidades eram mágicas.

as orquídeas sempre me aparentaram uma beleza de plástico, falsa alegria incontestável. prefiro não falar das orquídeas: me aborrecem por serem facilmente impressionáveis. as risonhas samambaiais são tias solteironas dividindo em harmonia o mesmo apartamento. apesar do ar implacável as bromélias são monjas da sombra que passam dias inteiros meditando, buscando a anima da essência.

os lírios, por sua vez, comeram o pão que o diabo amassou: qualquer brisa mal intencionada acaba em despetalação aguda. a passagem pelo mercado de flores enfraqueceu-lhes a autoestima, por isso é preciso ter um pouco mais de paciência com os traumas dos pobrezinhos. as roseiras choranas soluçaram a tarde inteira: diziam não suportar a dor do espinho na carne - então eu as reguei com abundância pra não perder a esperança. a dor das roseiras sangra.

então veio o pôr-do-sol salpicando traços róseos na escuridão que engolia tudo.

e eu anoiteci com medo de mim mesmo.

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