terça-feira, 25 de novembro de 2008

diário de um pecador

Rio 02/03/94 (3:05 AM)Peço ao Senhor todos os dias em minhas preces para não me deixar cair em tentação, mas o espinho parece penetrar na carne cada vez mais fundo. Perdi dez quilos desde que entrei em jejum e sinto que isso contribui apenas para aumentar o tamanho do deserto que se fez minha alma - "Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?!" Essa tarde, depois da escola dominical, fiquei encarregado dos meninos do grupo de louvor da igreja, os Cordeiros de Cristo. Na fazenda Lira de Davi, onde é ministrado o retiro espiritual, milhares de famílias se dirigem para lá a fim de não se inflamarem com a concupiscência gratuita desta época. Aqui nos refugiamos da roda dos escarnecedores, partilhamos da mesma fé e deixamos a cidade grande durante a festa da carne para nos desviar das setas do inimigo. O pastor Saulo tivera de resolver logo no primeiro dia do retiro alguns problemas relacionados à norte da pobre mãe, a quem não mantinha contato há dois anos. Disse-me que com a ausência de sua esposa, a missionária Rute, não haveria outra opção senão confiar tal tarefa a mim:"- O seminarista e estudante de teologia, é claro!", acrescentou ele. Mal tive tempo de pensar sobre a proposta quando fui surpreendido com a buzina do táxi do irmão Tomé apressando o Pastor. Esperei-o partir para me entregar a um medo que me arrebatara de súbito. Um terror incompreensível me afligiu – não, eu o conhecia e sabia o que era. Corri em direção ao quarto, tranquei a porta e me pus de joelhos, escondendo o rosto com as mãos e pedindo ao Senhor que me desse forças porque minha fé era do tamanho de um grão de mostarda. Sei que Ele não me provaria além do que eu pudesse suportar. Orei com todas as minhas forças e chorara quarenta dias e quarenta noites de lágrimas antes de desmaiar.




Rio 03/03/94 (9:45 PM)Acordei por volta das 10 h da manhã com um pouco de dor de cabeça mas confiante na minha tarefa. Como de costume entreguei o caso nas mãos de Deus, permitindo que fosse feita a Sua vontade. Após o término do almoço, estava programado uma atividade recreativa em uma cachoeira, a trinta minutos de distância daqui. Senti calafrios dos pés à cabeça e lembrei-me dos meus tempos de menino, quando meus pais costumavam levar-me para programas de férias desse tipo. O diácono Henrique, um senhor muito bondoso de cabelos brancos ralinhos, em dias de batismo - que se davam eventualmente em rios e cachoeiras - tomava conta dos meninos da minha igreja que ao avistarem a queda d'água tratavam de despir-se, caindo na água alvoroçadamente. Eu era muito tímido. Tinha vergonha do meu próprio corpo e daquilo que fazia com ele. Quando me dava conta dos outros meninos evidenciando suas vergonhas, desprovido de pudores – eu os invejava e queria ser como eles. Eu queria estar entre eles, tê-los ao meu lado – de modo a reviver minha infância. Atividades físicas nunca me foram permitidas pois diziam que eu era feito de “porcelana”. Ficava encantado ao ver os moleques mais peraltas mergulhando n’um fôlego só, atravessando por entre as pernas de três ou quatro meninos. Os mais encorpados davam cascudos nos menos favorecidos por puro capricho sádico e isso de qualquer forma me excitava. Aqueles delicados corpos desengonçados, protegidos apenas por uma penugem quase invisível, celebravam a vida em sua plenitude – e isso de qualquer forma me denunciava, despertando sensações alheias à natureza do meu corpo. Lá fomos nós, os meninos do grupo de louvor e eu à cachoeira. Eles tinham entre dez e treze anos e estavam sob minha responsabilidade, enquanto seus pais assistiam palestras direcionadas exclusivamente para os adultos. Nessas ocasiões eram discutidos diversos assuntos: os homens eram exortados quanto aos deveres do varão abençoado; as mulheres aprendiam a lidar com as pressões familiares habituais – tudo isso sob uma perspectiva cristã nada tradicional. O movimento pentecostal reformado frutificava cada vez mais e seu número de membros triplicara nos últimos anos. Prefiro não descrever minha experiência dessa tarde. Receio que apagá-la de minha memória seria o mais conveniente. Não quero dar chances para a semente do pecado germinar, senão seria o meu fim.

Rio 04/03/94 (8:47 PM)Não consegui dormir a noite inteira. Fechava os olhos, e ainda assim no meio escuro, reconhecia o sorriso dos cascudos e lá estavam eles: todos demoniacamente desavergonhados. Os semblantes angelicais se transformaram em algo indescritivelmente grotesco. Suas mãos deram lugares a tentáculos, agarrando-me violentamente enquanto suas línguas de serpente ora devoravam-me a boca, ora cuspiam sementes de Satã. "Abstinência é sabor de fel na carne crucificada", assim lia-se nos olhos chispantes dos infernais cães famintos. Das profundezas do Hades clamei ao Senhor três vezes – porém anjo algum veio ao meu auxílio. E pensar naquele pecado distinto, perdurando um sabor cada vez mais doce em meus lábios, costas, pernas, ser... O inferno aquecia minha alma ternamente e a carne prevalecera sobre o espírito sem clamar indulgência. Não saí do meu quarto o dia inteiro. Não quero conversar com ninguém. Disse aos que vieram à minha procura que estava indisposto mas que isso passaria logo. Preciso espairecer meus pensamentos. Minha alma está doente e só o Senhor pode curá-la.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

meu mundo caiu


no camarim, em frente ao espelho retangular, a moldura ornada de pisca-pisca ressaltava a expressão enfadada da atração mais notória do último cabaré da lapa. madame mink apreciava o frescor da dose dupla de cuba libre tragando-a lentamente, ora chupando o canudinho, ora lambendo os lábios carmesins. fazia um calor atípico naquela noite de inverno e o suor descia-lhe do pescoço gota-a-gota, se perdendo nos ombros largos e perfumados de shalimar. antes de entrar no palco, olhou languidamente a foto de bette davis pendida ao lado esquerdo do biombo oriental em tons sombrios, e arrepiou-se. havia algo de sinistro naquele olhar emoldurado que a observava de soslaio. jamais o percebera exceto àquela noite. beijou as contas de oxum, presenteadas por uma paixão antiga que estivera de visita no gantois de mãe menininha, depois levantou-se da cadeira, ajeitou o vestido de lantejoulas prateado que evidenciava a silhueta pouco delgada, e seguiu em direção ao refletor que a faria brilhar. erguem-se as cortinas. no centro do palco um feixe de luz pálido promulga a aparição da artista. ela surge cabisbaixa – mas 'inda assim radiante – ao som de um trompete soturno embalado por uma orquestra tristíssima. fecha os olhos como se estivesse num transe ritualístico. eleva o microfone gentilmente a altura dos seios alegóricos e sem emitir sequer um som dos lábios, interpreta o samba-canção:
­
– "meu mundo caiu e me fez ficar assim" ­– continuou como se a dor fosse deveras sua:

"...você conseguiu

e agora diz que tem pena de mim

não sei se me explico bem

eu nada pedi

nem à você nem à ninguém

não fui eu que caí

sei que você entendeu

sei também que não vai se importar

se meu mundo caiu

eu que aprenda a levantar"

ao término da apresentação agradece aos aplausos com um sorriso cortês; de repente do fundo da platéia lhe atiram uma rosa de plástico. Sente-se lisonjeada pelo singelo troféu de puta e novamente agradece ao carinho e a gentileza dispensados. depois despede-se do público e retorna ao camarim.

tratou de vestir-se apropriadamente para deixar o cabaré, e assim que o fez decidiu partir. se não fosse pela mão robusta daquele estranho lhe segurando o braço esquerdo talvez lhe restasse outra saída:

– hei, 'pera aí – disse o estranho.

– oi?! ­– retrucou madame mink armando um sorriso tão artificial quanto a rosa ofertada, enquanto piscava os olhos freneticamente de maneira um tanto afetada.

– 'cê é show, hein?! realmente demais aquilo...show de bola mermo!

– muitíssimo obrigada, meu querido!

a barba por fazer somada aos galanteios insossos denunciavam a inexperiência púbere do rapaz. nem por isso notou menos aquela beleza ordinária, dessas que passam quase despercebidas. madame mink chegou a confundi-lo com um dos peões que descarregavam caixotes de legumes para a feira de domingo no passeio, mas achou pouco provável devido ao corpo magro e esguio.

– posso te pagar uma bebida ou coisa parecida?

– é que eu já 'tava de saída,
replicou ela. em seguida, corrigiu-se enrubescida: – bem, pelo menos eu 'tava até alguns segundos...

– isso quer dizer que eu tenho alguma condição? – indagou o rapaz levantando sobrancelhas e polegares, demasiado confiante de si.

– bem... – hesitou ela, unicamente para não soar fácil demais: – antes eu preciso saber o seu nome porque não tenho o costume de beber com estranhos.

– beleza! meu nome é diogo, prazer! e beijou-a duas vezes, da esquerda para direita, sendo que na terceira deslizou os lábios sorrateiros, denotando explicitamente suas sacanas intenções.

ele que dispunha de alguns trocados pagou a coca-cola. ela a garrafa de rum montilla. bebericaram duas, não mais que três doses de cuba, com ímpetos de afugentar a timidez e quando se deram conta lá estavam os dois se embebendo de luxúria em um motel barato na gomes freire. diogo a comia sem pena. ela dava horrores. ambos fodiam-se sem pudores. madame mink, agora de bruços, sentia todo peso do corpo magro e esguio de diogo. as mãos rudes de feirante apertavam-na os ombros largos deslizando até o pescoço suado. tinha a sensação de que as mãos do rapaz pesavam mais e mais. sentiu-se sufocada, mal podia respirar. diogo lhe sussurra com hálito quente ao pé do ouvido, quase encostando a língua em seu lóbulo: – não tenho pena de você... a cama girava como um furioso furacão enquanto madame mink piscava os olhos freneticamente – só que desta vez sem afetação. o shalimar fora substituído pela delicada fragrância da morte. a tez pálida, sem feixe de luz, sem refletor, prenunciava o baixar das cortinas para a cena final: meu mundo caiu – pensou ela antes de deixar o palco. diogo guardara o pau recém-gozado dentro das calças jeans, abandonando o cadáver frio que jazia ali, de olhos abertos, contemplando a garrafa de rum montilla e a rosa de plástico sobre o rádio AM/FM, ao lado da cama daquele motel sujo.

domingo, 2 de novembro de 2008


"Parem o mundo que eu quero descer..."

(Raul Seixas)

desautomatizar... e se fazer escrever algo sobre a vida; a vida em função “repeat”; a vida que não funciona para ser contada; ser o sinal vermelho que interrompe sem parar o fluxo – porque o fluxo, ah, o fluxo... –, amigo, ele não pára! não atender a droga do telefone celular – vai desfrutar daquele novo velho som que você baixou na internet por pura piração, por não ter o quê fazer, por não ter saco de ler, por não ter saco de escutar as músicas favoritas, por não ter saco “de não ter saco”, enquanto conversa com um velho amigo novo, que não pára de fumar igualzinho a você, sobre como tudo passa rápido, as horas, os dias, semanas, meses, de repente é mais um ano – porra tudo passa rápido pra caralho! deixar a porra do telefone tocar! o fluxo segue sem pena, neguinho! A vida de novela mexicana, com direito a menina-pobre-ingênua-que-se-casa-contra-gosto-da-família-do-mocinho-rico-com-pretendente-também-rica-malvada-que-persegue-à-mocinha-e-tudo: "clichê" é o caralho! a vida que furou o CD e o vinil de tanto repetir, que te faz ficar ancorado no passado, perdendo tudo que acontece neste exato instante; sobre a vida que “aos trancos e barrancos” ainda se faz escrita... desautomatizando...

judia de mim, judia


à paula gicovate


judia de mim, judia
parce que c'est belle,
minha bela,
la dolce vita

let's gonna chope the night away
e dá-lhe farofa
e dá-lhe galinha
longa vida à rainha de copas,
à rainha de copa,
à desdêmona hipocondríaca
salve, salve, regina!

judia de mim, judia
m'embala com chorinhos
tuas dores de bolero
chorinhos de tua perfídia
em tristes tangos argentinos
dor & música & verso

judia de mim
beutiful, beatiful, beautiful,
judia,
judia,
judia!