domingo, 21 de fevereiro de 2010
os ossos que rangem feito dentes enraivecidos ainda não quebraram de vez. é preciso quebrar o maxilar. é preciso não quebrar a cuca. afogar-se na imensidão vaga do vazio, chegar até o fundo e colher algas marinhas. tudo não passa de um grande jogo - é preciso correr o risco sempre. a dúvida que não é boa, que não é má, é na verdade respiração da alma. não tenha pressa nenhuma. porém, antes de tudo, deve-se fechar os olhos e não ver nada: é preciso ficar cego pra entender a sensação de ter os pés refrescados à beira da praia. meu vício é minha vaidade. eu inalo meu orgulho para depois assoprá-lo em espiral - e ele se defaz desaparendo no ar.
terça-feira, 9 de fevereiro de 2010
o silêncio do jardim crepuscular
começou no jardim com a criação de toda uma humanidade. o dia era o sétimo e o jardim suspenso estava verde e gracioso. o sol brilhava intenso feito uma laranja flamejante enquanto pássaros de aço estrondosos rasgavam o céu.
a inflorescência do jasmineiro trêmulo gemeu baixinho.
nem sequer uma nuvem prenunciava chuva, bica nenhuma pingava uma gota. na boca, a língua estalava seca e áspera e o calor mantinha-se estático: "bom-dia sol!" de olheiras insones. sol, astro maior, demasiado real, corola de girassol suspensa em chamas. o sol gerava partículas sanilizadas sobre as pálpebras cegando a visão, sublinhando olheiras. o sol requeria do homem grossas-parassois-sobrancelhas. o sol provocava devaneios de braços entrelaçados à quietude do jardim suspenso.
o bambuzal do canteiro acordara em alvoroço, assustado, e tamanho descontentamento amarrou-lhe logo a cara. parecia de qualquer modo avesso a surpresas - exceto as boas, é claro. clamava "pai abraão, pai abraão" enquando rogava por água. as helicônias, musas enraizadas em solo ácido, eram contraltos delicadas que carregavam gravíssimas feridas de amor. o canto das helicônias era baixinho, espécie de sussurro jururu.
as onze horas eram continentalmente pontuais e foram as que mais floriram em primaveras passadas. durante as férias do jardim de infância, após o café da manhã, eu as contemplava desabrochar com olhos imaculados de inocência. minha relação com as onze horas me remete aos dias em que até a pequenez das novidades eram mágicas.
as orquídeas sempre me aparentaram uma beleza de plástico, falsa alegria incontestável. prefiro não falar das orquídeas: me aborrecem por serem facilmente impressionáveis. as risonhas samambaiais são tias solteironas dividindo em harmonia o mesmo apartamento. apesar do ar implacável as bromélias são monjas da sombra que passam dias inteiros meditando, buscando a anima da essência.
os lírios, por sua vez, comeram o pão que o diabo amassou: qualquer brisa mal intencionada acaba em despetalação aguda. a passagem pelo mercado de flores enfraqueceu-lhes a autoestima, por isso é preciso ter um pouco mais de paciência com os traumas dos pobrezinhos. as roseiras choranas soluçaram a tarde inteira: diziam não suportar a dor do espinho na carne - então eu as reguei com abundância pra não perder a esperança. a dor das roseiras sangra.
então veio o pôr-do-sol salpicando traços róseos na escuridão que engolia tudo.
e eu anoiteci com medo de mim mesmo.
a inflorescência do jasmineiro trêmulo gemeu baixinho.
nem sequer uma nuvem prenunciava chuva, bica nenhuma pingava uma gota. na boca, a língua estalava seca e áspera e o calor mantinha-se estático: "bom-dia sol!" de olheiras insones. sol, astro maior, demasiado real, corola de girassol suspensa em chamas. o sol gerava partículas sanilizadas sobre as pálpebras cegando a visão, sublinhando olheiras. o sol requeria do homem grossas-parassois-sobrancelhas. o sol provocava devaneios de braços entrelaçados à quietude do jardim suspenso.
o bambuzal do canteiro acordara em alvoroço, assustado, e tamanho descontentamento amarrou-lhe logo a cara. parecia de qualquer modo avesso a surpresas - exceto as boas, é claro. clamava "pai abraão, pai abraão" enquando rogava por água. as helicônias, musas enraizadas em solo ácido, eram contraltos delicadas que carregavam gravíssimas feridas de amor. o canto das helicônias era baixinho, espécie de sussurro jururu.
as onze horas eram continentalmente pontuais e foram as que mais floriram em primaveras passadas. durante as férias do jardim de infância, após o café da manhã, eu as contemplava desabrochar com olhos imaculados de inocência. minha relação com as onze horas me remete aos dias em que até a pequenez das novidades eram mágicas.
as orquídeas sempre me aparentaram uma beleza de plástico, falsa alegria incontestável. prefiro não falar das orquídeas: me aborrecem por serem facilmente impressionáveis. as risonhas samambaiais são tias solteironas dividindo em harmonia o mesmo apartamento. apesar do ar implacável as bromélias são monjas da sombra que passam dias inteiros meditando, buscando a anima da essência.
os lírios, por sua vez, comeram o pão que o diabo amassou: qualquer brisa mal intencionada acaba em despetalação aguda. a passagem pelo mercado de flores enfraqueceu-lhes a autoestima, por isso é preciso ter um pouco mais de paciência com os traumas dos pobrezinhos. as roseiras choranas soluçaram a tarde inteira: diziam não suportar a dor do espinho na carne - então eu as reguei com abundância pra não perder a esperança. a dor das roseiras sangra.
então veio o pôr-do-sol salpicando traços róseos na escuridão que engolia tudo.
e eu anoiteci com medo de mim mesmo.
terça-feira, 2 de fevereiro de 2010
buraquinhos
era uma vez a cuequinha rasgada. a cuequinha nunca foi lá grande coisa, até pode-se dizer que durou pouco mais que o esperado, mas a vida é repleta de surpresas minúsculas e a cuequinha, cujo futuro anterior ao indistinto desfecho seria evidentemente tornar-se pano para polir movéis, fundiu-se em um corpo confuso em um. as outras, brancas de algodão, encardiam de inveja da cuequinha rasgada. um corpo, por mais confuso que fosse, sempre seria mais confortável que uma gaveta escura cheia de baratas mortas fedendo a naftalina. no entanto, um corpo confuso amava tanto a cuequinha que chegava a desgastá-la, enchendo-a de buraquinhos por todas as partes. o tempo ia desfiando cada vez mais a cuequinha, até que um dia a pobrezinha não aguentou e rompeu-se em trapos. no dia seguinte, lia-se nas manchetes de jornais em letras garrafais:"corpo seminu é encontrado com região pélvica perfurada em banheira de sangue".
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010
sorte
sorte sua, não? sorte sua a lua brilhar na ponta do seu dedo, na altura do prédio vizinho. um pedaço do céu estrelado reservado a sua contemplação. sorte sua a grana pra bancar uma boa foda, o dom pérignon, uvas sem semente - sorte sua não ter um amor, pois assim sendo, poupam-se as boas desculpas, sua arquitetura de belas mentiras. sorte sua o mundo na palma da mão, só que o mundo não funciona sem bateria. sorte sua a vida armazenada nos infinitos gigabytes do tempo. sorte suada, não? nada vem fácil. sorte sua a testa e dá dor de cabeça. sorte sua ter cortado o cordão umbilical, só pra sentir a agradável sensação da queda sem amparo, sem braços. sorte sua as viagens à europa três vezes ao ano. o avião não explodiu nenhuma vez, exatamente como você não esperava. sorte sua o carro com equipamento antipoluente no trânsito de segunda-feira. sua sorte a consciência tranquila no plano de saúde, no seguro residencial, no sistema de vigilância, no seguro de vida e nas pílulas tranquilizantes. sorte sua a meditação esfriar cabeça, ao invés da bala.
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