Rio 02/03/94 (3:05 AM)Peço ao Senhor todos os dias em minhas preces para não me deixar cair em tentação, mas o espinho parece penetrar na carne cada vez mais fundo. Perdi dez quilos desde que entrei em jejum e sinto que isso contribui apenas para aumentar o tamanho do deserto que se fez minha alma - "Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?!" Essa tarde, depois da escola dominical, fiquei encarregado dos meninos do grupo de louvor da igreja, os Cordeiros de Cristo. Na fazenda Lira de Davi, onde é ministrado o retiro espiritual, milhares de famílias se dirigem para lá a fim de não se inflamarem com a concupiscência gratuita desta época. Aqui nos refugiamos da roda dos escarnecedores, partilhamos da mesma fé e deixamos a cidade grande durante a festa da carne para nos desviar das setas do inimigo. O pastor Saulo tivera de resolver logo no primeiro dia do retiro alguns problemas relacionados à norte da pobre mãe, a quem não mantinha contato há dois anos. Disse-me que com a ausência de sua esposa, a missionária Rute, não haveria outra opção senão confiar tal tarefa a mim:"- O seminarista e estudante de teologia, é claro!", acrescentou ele. Mal tive tempo de pensar sobre a proposta quando fui surpreendido com a buzina do táxi do irmão Tomé apressando o Pastor. Esperei-o partir para me entregar a um medo que me arrebatara de súbito. Um terror incompreensível me afligiu – não, eu o conhecia e sabia o que era. Corri em direção ao quarto, tranquei a porta e me pus de joelhos, escondendo o rosto com as mãos e pedindo ao Senhor que me desse forças porque minha fé era do tamanho de um grão de mostarda. Sei que Ele não me provaria além do que eu pudesse suportar. Orei com todas as minhas forças e chorara quarenta dias e quarenta noites de lágrimas antes de desmaiar.
Rio 03/03/94 (9:45 PM)Acordei por volta das 10 h da manhã com um pouco de dor de cabeça mas confiante na minha tarefa. Como de costume entreguei o caso nas mãos de Deus, permitindo que fosse feita a Sua vontade. Após o término do almoço, estava programado uma atividade recreativa em uma cachoeira, a trinta minutos de distância daqui. Senti calafrios dos pés à cabeça e lembrei-me dos meus tempos de menino, quando meus pais costumavam levar-me para programas de férias desse tipo. O diácono Henrique, um senhor muito bondoso de cabelos brancos ralinhos, em dias de batismo - que se davam eventualmente em rios e cachoeiras - tomava conta dos meninos da minha igreja que ao avistarem a queda d'água tratavam de despir-se, caindo na água alvoroçadamente. Eu era muito tímido. Tinha vergonha do meu próprio corpo e daquilo que fazia com ele. Quando me dava conta dos outros meninos evidenciando suas vergonhas, desprovido de pudores – eu os invejava e queria ser como eles. Eu queria estar entre eles, tê-los ao meu lado – de modo a reviver minha infância. Atividades físicas nunca me foram permitidas pois diziam que eu era feito de “porcelana”. Ficava encantado ao ver os moleques mais peraltas mergulhando n’um fôlego só, atravessando por entre as pernas de três ou quatro meninos. Os mais encorpados davam cascudos nos menos favorecidos por puro capricho sádico e isso de qualquer forma me excitava. Aqueles delicados corpos desengonçados, protegidos apenas por uma penugem quase invisível, celebravam a vida em sua plenitude – e isso de qualquer forma me denunciava, despertando sensações alheias à natureza do meu corpo. Lá fomos nós, os meninos do grupo de louvor e eu à cachoeira. Eles tinham entre dez e treze anos e estavam sob minha responsabilidade, enquanto seus pais assistiam palestras direcionadas exclusivamente para os adultos. Nessas ocasiões eram discutidos diversos assuntos: os homens eram exortados quanto aos deveres do varão abençoado; as mulheres aprendiam a lidar com as pressões familiares habituais – tudo isso sob uma perspectiva cristã nada tradicional. O movimento pentecostal reformado frutificava cada vez mais e seu número de membros triplicara nos últimos anos. Prefiro não descrever minha experiência dessa tarde. Receio que apagá-la de minha memória seria o mais conveniente. Não quero dar chances para a semente do pecado germinar, senão seria o meu fim.
Rio 04/03/94 (8:47 PM)Não consegui dormir a noite inteira. Fechava os olhos, e ainda assim no meio escuro, reconhecia o sorriso dos cascudos e lá estavam eles: todos demoniacamente desavergonhados. Os semblantes angelicais se transformaram em algo indescritivelmente grotesco. Suas mãos deram lugares a tentáculos, agarrando-me violentamente enquanto suas línguas de serpente ora devoravam-me a boca, ora cuspiam sementes de Satã. "Abstinência é sabor de fel na carne crucificada", assim lia-se nos olhos chispantes dos infernais cães famintos. Das profundezas do Hades clamei ao Senhor três vezes – porém anjo algum veio ao meu auxílio. E pensar naquele pecado distinto, perdurando um sabor cada vez mais doce em meus lábios, costas, pernas, ser... O inferno aquecia minha alma ternamente e a carne prevalecera sobre o espírito sem clamar indulgência. Não saí do meu quarto o dia inteiro. Não quero conversar com ninguém. Disse aos que vieram à minha procura que estava indisposto mas que isso passaria logo. Preciso espairecer meus pensamentos. Minha alma está doente e só o Senhor pode curá-la.